(…) a culpa, porém, tanto a comprovável como a escondida, ou aquela que apenas se suspeita, essa fica. Faz tiquetaque sem parar, e mesmo nas viagens a nenhures lá está ela no seu lugar, à espera. Recita a sua pequena sentença, não teme repetições, faz-se esquecer, por longos períodos, magnânima, e hiberna em sonhos. Permanece como sedimento, não pode ser removida como uma mancha, sorvida como uma poça. Aprendeu desde cedo a procurar refúgio, confessada na concha de um ouvido, a tornar-se mais pequena do que pequena, num nada, fazendo-se passar por prescrita ou há muito perdoada, mas está afinal, assim que a cebola desaparece camada após camada, inscrita nas camadas mais novas: às vezes com letras maiúsculas, outras com frase subordinada ou nota de rodapé, às vezes é claramente legível, outras ainda aparece em hieróglifos que, quando muito, podem ser decifrados a custo.
Günter Grass,
Descascando a Cebola – Autobiografia 1939-1959. Casa das Letras, p. 33.
[Neste livro, o autor assume ter pertencido à Juventude Hitleriana e às Waffen-SS, confissão que, à data, foi causadora de grande polémica. Paralelamente a uma incursão por uma Alemanha devastada pela guerra, este livro é também uma incursão pela vida interior de um homem perseguido pela culpa, pelo constante exercício da justificação, pela busca (infrutífera?) de expiação.]