quarta-feira, 28 de abril de 2010

Assédio da alegria

Nada pode igualar a euforia do melancólico quando a alegria chega. Mas antes que lhe seja permitido chegar, esta tem que manter um assédio ao seu coração fatigado. Deixa-me entrar, mia ela, ruge ela. O coração tem que ser forçado.

Susan Sontag, O Amante do Vulcão

domingo, 25 de abril de 2010

O valor do vento

O carro passava lentamente pelo estômago da máquina de lavar e eu lá dentro, a tentar distrair a ligeira claustrofobia mudando o CD. Quando abri a caixinha transparente, descobri, serenamente poisado no seu interior, o poema que o meu amigo lá deixara. O meu amigo tem que me desculpar a distracção, não tinha reparado nele antes. Mas o meu amigo tem que saber que fiquei maravilhada com a descoberta, muito mais do que se tivesse achado 80 escudos :)
Obrigada por mais esta prenda talhada em verso.

Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
o vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
o vento é o melhor veículo que conheço
só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
mas só hoje soube verdadeiramente o valor do vento
o vento actualmente vale oitenta escudos
partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto

Ruy Belo, Todos os Poemas

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Do quintal ajardinado da mãe

Nesta época do ano, costumam aparecer por ali, mantendo-se à guarda da luz e da atenção vigilante da mãe. Por vezes, galgam os degraus, atravessam o umbral e acomodam-se alegremente no interior, em composições buriladas em cuidado. Sempre pelas mãos da mãe, que sabem cuidar e sabem compor.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O vulcão


Fotos de Örvar Atli Þorgeirsson, surripiadas aqui
A boca de um vulcão. Sim, boca; e língua de lava. Um corpo, um monstruoso corpo com vida, macho e fêmea ao mesmo tempo. Expele, ejecta. É também um interior, um abismo. Uma coisa viva, que pode morrer. Algo inerte que de vez em quando se agita. Que apenas existe de modo intermitente. Uma ameaça permanente. Ainda que previsível, geralmente imprevista. Caprichosa, insubmissa, malcheirosa. Será isso que se entende por primitivo? Nevado del Ruiz, monte de Santa Helena, La Soufrière, La Pelée, Krakatoa, Tambora. O gigante adormecido que desperta. O gigante vacilante que se vira para nós. King Kong. Vomitando a destruição, para logo voltar a cair na sua letargia.

Susan Sontag, O Amante do Vulcão

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Limiar sagrado

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

Anna Akhmátova, Só o Sangue Cheira a Sangue

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Fantasias, infelizmente

Fantasias de omnipotência. Amplificar aqui. Suspender acolá. Cortar o som. Como no fundo da orquestra o timbaleiro que, depois de ter arrancado aos seus dois enormes tambores uma enfiada de sons ribombantes, poisa rapidamente as baquetas e abafa o som assentando as palmas da mão muito levemente, muito firmemente, na membrana (…) – assim se poderia calar um pensamento, um sentimento, um temor.

Susan Sontag, O Amante do Vulcão

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Rendilhados

Sé Catedral de Braga
Depois do sushi, o regresso aos adornos lusitanos.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

"A lot can happen in the middle of nowhere"

Fargo (1996), de Joel Coen

No Dakota do Norte, há xerifes grávidas que ganham óscares.
Grande estado.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Kolya e Louka

Kolya tem 5 anos. Louka tem 55.
Kolya fala russo. Louka fala checo.
Num semáforo da vida, Kolya oferece a Louka o gesto que transcende as distâncias e arreda os medos. E ambos aprendem a confiança.
Se todos os filmes fossem assim…


Kolya (1996), de Jan Sverák

sábado, 3 de abril de 2010

Luz exterior

O que nos fala a tela de Clarissa pintada por Erico Veríssimo? Que o conhecimento de si só se dá em confronto com o mundo e ele é quem molda até aqueles nossos valores mais irredutíveis. Somos todos forjados conforme aqueles retratos feitos em câmara obscura, que se completam unicamente com a captação da luz exterior. (…) Em último caso, o ponto de partida e a única razão de ser de todo o conhecimento e de toda a arte não é nada mais do que a alteridade.

Prefácio de Rodrigo Petrónio à obra Clarissa de Erico Veríssimo

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Em trânsito

Estação do Oriente

Destino: qualquer um que permita entrar em estado catatónico durante 3 dias. De preferência, com árvores mais verdes e frondosas do que aquelas projectadas por Calatrava. E desejavelmente, à mesma velocidade a que o Alfa fez hoje o percurso entre Campanhã e Braga: a da caracoleta. O "meu" suburbano porta-se muito melhor. Pelo menos, não frustra as expectativas.