sexta-feira, 16 de abril de 2010

Limiar sagrado

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

Anna Akhmátova, Só o Sangue Cheira a Sangue

13 comentários:

  1. No outro dia apanhei por aí um outro poema desta autora, que me deixou «de olho nela». Este poema é magnífico e a tradução parece-me muito boa. Julgo que é uma edição da Assírio. Estou enganado?
    Obrigado. Boa noite.

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  2. É belíssimo, não é? Sim, é da Assírio e a tradução é de Nina Guerra e Filipe Guerra. Anna
    Akhmátova foi-me "apresentada" por um colega de trabalho, também poeta, que muito gentilmente nos enviou um outro poema dela, no Dia Mundial da Poesia. Foi uma boa descoberta.
    Obrigada pela visita. É um prazer tê-lo por cá.
    Bom fim-de-semana!

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  3. Muito belo! Entramos num jogo de palavras etéreas em antinomia com outras bem mais manifestas... algo de improvável em alquimia com o verosímil. Bastante sedutoras as palavras e as ideias.
    Não conhecia. Obrigada pela apresentação da autora. Vou estar de "olho nela" também.
    Só o sangue cheira a sangue parece ser a única certeza. Interessante! Sei qual esse cheiro. Talvez ainda tenha que descobrir o cheiro da amizade,da felicidade e de outras mais...
    Um bom fim de semana para si tb

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  4. Eu gosto desta ideia de um limiar, de uma fronteira a partir da qual habita apenas o "eu". Gosto dessa ideia de intimidade connosco próprios e de liberdade da alma.
    Um bom fim-de-semana para si, CF.

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  5. Por mais que se crie intimidade ou cumplidade, estaremos sempre sós...nesse limiar sagrado.

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  6. Sim, há coisas que devem permanecer longe de todos os "olhares". O emaranhamento e a indiferenciação podem gerar "feridas mortais".

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  7. O limiar é também uma fronteira. Conhecer os limites e as consequências da sua transposição pode ser previdente e, simultaneamente, tranquilizador. Belíssimo poema.

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  8. Mais uma coincidência, amiga. Só agora vi o teu comentário em resposta a CF e me apercebi da sobreposição dos conceitos que usámos. Há (boas) coisas assim :) Beijinho.

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  9. Anti-soviético e um grave desvio relativamente ao Realismo Socialismo - a "arte" oficial -, considerou Estaline.

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  10. R.
    há coincidências que não são acasos :)
    Beijinho.

    Carlos,
    o seu comentário fez-me explorar um pouco mais da trajectória de Akhmátova. Agora, não só o compreendo, como passei também a conhecer um outro poema da autora, "Requiem", uma prova do seu sofrimento insubmisso. Não posso deixar de trazer aqui um excerto:
    ...
    I learned how faces fall,
    How terror darts from under eyelids,
    How suffering traces lines
    Of stiff cuneiform on cheeks,
    How locks of ashen-blonde or black
    Turn silver suddenly,
    Smiles fade on submissive lips
    And fear trembles in a dry laugh.
    And I pray not for myself alone,
    But for all those who stood there with me
    In cruel cold, and in July’s heat,
    At that blind, red wall.
    ...

    Muito obrigada.

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  11. Quando li o poema pensei que Anna
    Akhmátova fosse a poetisa que (segundo recordo ter lido num velho texto de Clara Ferreira Alves no Expresso) escrevia poemas em pedaços papel ou mesmo de sabão, se não arranjasse papel, e os fazia sair às escondidas do campo de concentração onde estava presa. Mas entretanto fui ler um pouco acerca dela e, se bem percebi, nunca esteve presa. Quem seria a tal poetisa? Lembro-me que gostei muito dos versos citadas por CFA no tal texto.

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  12. Seria Irina Ratushinskaya? Segundo o que li, enquanto prisioneira num campo de trabalho por "agitação anti-soviética", gravava poemas em sabão, memorizava-os, destruindo-os depois.
    Mesmo que não seja a mesma, não deixa de ser (também esta) uma grande história de resistência.

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  13. Confirmei. Foi de facto Irina Ratushinskaya. Mas não consegui encontrar nenhum poema dela na net. Independentemente da qualidade dos poemas, é uma grande história - infelizmente real e resultante de uma vida trágica.

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