sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Da culpa


(…) a culpa, porém, tanto a comprovável como a escondida, ou aquela que apenas se suspeita, essa fica. Faz tiquetaque sem parar, e mesmo nas viagens a nenhures lá está ela no seu lugar, à espera. Recita a sua pequena sentença, não teme repetições, faz-se esquecer, por longos períodos, magnânima, e hiberna em sonhos. Permanece como sedimento, não pode ser removida como uma mancha, sorvida como uma poça. Aprendeu desde cedo a procurar refúgio, confessada na concha de um ouvido, a tornar-se mais pequena do que pequena, num nada, fazendo-se passar por prescrita ou há muito perdoada, mas está afinal, assim que a cebola desaparece camada após camada, inscrita nas camadas mais novas: às vezes com letras maiúsculas, outras com frase subordinada ou nota de rodapé, às vezes é claramente legível, outras ainda aparece em hieróglifos que, quando muito, podem ser decifrados a custo.

Günter Grass, Descascando a Cebola – Autobiografia 1939-1959. Casa das Letras, p. 33.

[Neste livro, o autor assume ter pertencido à Juventude Hitleriana e às Waffen-SS, confissão que, à data, foi causadora de grande polémica. Paralelamente a uma incursão por uma Alemanha devastada pela guerra, este livro é também uma incursão pela vida interior de um homem perseguido pela culpa, pelo constante exercício da justificação, pela busca (infrutífera?) de expiação.]

11 comentários:

  1. Não me sinto culpado

    acredito na cebola e no alho
    antibióticos naturais

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  2. A culpa não aproveita a ninguém... nem ao próprio!
    Mas é necessário um luto, para esquecer aquela parte que de nós morreu.

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  3. Ainda que insidiosa, a culpa só pode ser sentida por quem é capaz de acções e sentimentos nobres, mesmo que paralelamente a acções e sentimentos hediondos. Livre-nos a sorte dos que nunca sentem culpa.

    Um grande beijinho e um bom fim-de-semana.

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  4. Quando do ocorrido, Günter Grass passou boa parte do prémio ganho para os ciganos, vítimas em Kosovo. Não sei bem como deve ficar tudo isso arranjado entranhas a dentro. Algumas coisas se refaz, outras nunca são refeitas. Entretanto há de se ter coragem para admitir a omissão e muita serenidade para refazer o caminho de volta.

    Culpas, quem não as tem, as voltas com o jardim dos sonhos, espera-se o despertar.

    bjs nossos

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  5. Sara,
    Este é um livro que tenho na pilha para ler.
    Exactamente, é a culpa cristã, o vazio e o menos que zero de uma Alemanha cáustica, a expiação, um trauma de um homem que simboliza todos - um país.
    Todavia, a culpa é um sentimento bem ocidental!
    Bj.

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  6. É um tema forte. Levou-me até ao filme "O pianista" do Roman Polanski que revi, há pouco. Numa guerra ninguém sai a ganhar, todos serão eternos derrotados, de um ou de outro modo.


    L.B.

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  7. Para estes, que sentem a culpa por erros cometidos,vai ainda a minha compreensão. Impossível é compreender os que cometem, insensível e friamente, toda a espécie de crime sem que isso sequer lhes tire o sono...
    Abraço

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  8. A questão da culpa tem muito que se lhe diga. Diga-se, a propósito, que a maioria das religiões se serve dela duma forma muito eficaz.

    Beijo :)

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  9. Oi Sara
    Biblicamente todos pecaram e consequentemente sentem-se culpados.
    Prá nós o tamanho da culpa corresponde ao tamanho do sofrimento e do julgamento.
    A diferença é como as pessoas respondem as suas próprias culpas.
    Se há arrependimento e vida justa,é tentar vida nova como na promessa divina.
    Paga-se a dívida com a sociedade e acabaram´se as culpas ,nao?
    senaõ não vale a pena viver!
    deixo beijinhos pra voce.

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  10. Gostei da analises que fazes.
    Não li nada dele, nem me tenta.
    Abraços de vida

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