sábado, 7 de maio de 2011

Jogos do espírito

Pablo Picasso, O Sonho, 1932

À cabeceira dos doentes, acontecera-lhe muitas vezes ouvir contar sonhos. Também ele tivera os seus. As pessoas contentavam-se, geralmente, em extrair dessas visões presságios às vezes certos, dado que revelam os segredos daquele que sonha; ele, todavia, pensava para consigo que tais jogos de espírito entregue a si mesmo tinham, sobretudo, a possibilidade de revelar a maneira como a alma se apercebe das coisas. Punha-se a enumerar as qualidades das substâncias que via em sonhos; a leveza, a impalpabilidade, a incoerência, a total liberdade em relação ao tempo, a mobilidade de formas de uma pessoa, que faz que cada qual seja muitos, e vários se reduzam a um só, o sentimento quase platónico da reminiscência, o sentido quase insuportável de uma necessidade.

Marguerite Yourcenar, A Obra ao Negro, Planeta de Agostini, p. 194

15 comentários:

  1. É pura coincidência trazeres aqui a Marguerite Yourcenar ?

    Como a ela me referi na resposta à RUTE no jardim...

    Muito bem utilizaste " a mobilidade de formas de uma pessoa, que faz que cada qual seja muitos" neste SONHO do Picasso.

    Um beijo.

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  2. Foi coincidência, João. Acabei há pouco de ler o "A Obra ao Negro" e este foi um dos excertos que quis partilhar convosco. A propósito, não sabia que a Marguerite Yourcenar andou pelo Porto e ficou encantada com a Ribeira e a Sé. Muito bom! :)
    Obrigada e um beijinho.

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  3. Gosto muito de Marguerite Yourcenar, mas nunca li este livro. Tenho de ler. Bom Domingo!

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  4. Querida Sara
    tens um dom especial de libertar do que lês, as palavras mais lindas e profundas...acho que vou voltar a ler este livro, pois assim como os sonhos, a cada leitura permitir-me-ei vivenciar a impermanência!!!
    Num congresso, sobre oncologia, que fui há dias alguém disse: "sem sonhos não há matéria prima para se construir a realidade e os sonhos são uma expectativa razoável".... eu acho que sim!

    bjs grandes

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  5. E a fragilidade dos sonhos quando se desperta, se desfaz
    e esse "sentido quase insuportável ... " de sonhar como se o fosse um porto seguro ?
    é tudo tao fugaz e tão breve !
    os tais "jogos do espírito"
    que sonhemos, pois .
    Gostei do fragmento Sara , o livro pareceu-me muito bom.Obrigada pela dica ,implícita.
    Lindo pincel de Picasso.
    abraços

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  6. Bem haja por ter conduzido Marguerite Yourcenar até nós. É sempre uma excelente escolha porque aprendemos muito com essa grande senhora.
    Um beijo.

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  7. Saramiga

    Encontrei-te no Interioridades do A.C. que escreve muito bem e com muito critério, bom gosto e sensibilidade.

    E foi esse critério, bom gosto e sensibilidade que vim encontrar também aqui. Obrigado.

    Marguerite Yourcenar, bela recordação. Foi como jovem jornalista ou jornalista jovem que tive a felicidade de a conhecer nos Estados Unidos. Foi já no seu período de orientalismo místico.

    Consegui chegar à fala com ela, mandando-lhe recado por um amigo que também por lá estava, dizendo-lhe que minha mulher era Goesa. Recebeu-me e conversámos durante quase duas horas.

    Como se tratava de conversa e de troca de opiniões e de impressões, prometi-lhe que não escreveria nada, a pedido dela. Guardei-a comigo. Refiro-a agora, só agora. ...

    Qjs = queijinhos = beijinhos

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  8. Ela conhece como poucas pessoas as entranhas ocultas das pessoas e os seus mistérios.

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  9. Sara,
    Este seu post obrigou-me a vasculhar na prateleira, onde se abrigava uma edição de 1985 de A Obra ao Negro, da responsabilidade da Publicações D. Quixote. Na altura, ainda muito jovem e acabadinho de ler o belíssimo Memórias de Adriano, Yourcenar era referência. E ainda é. Mas faltava-me o estofo suficiente para o novo título. Li-o, é verdade, mas o desassossego foi constante.
    Agora que me traz a memória do livro, quem sabe, talvez surja a vontade da releitura.
    Obrigado.

    Beijo :)

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  10. ... tudo é tão frágil...

    que nos valha sonhar

    Boa memória

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  11. Lembra-me os versos de Sérgio Godinho: "em sonhos, é sabido, não se morre. Aliás, essa é a única vantagem"... :)

    Beijinho grande e uma óptima continuação!

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  12. Os sonhos são muitas vezes uma fuga ao insuportável, outras vezes uma âncora, um caminho, uma força.
    Que bom trazeres Yourcenar,a mulher sábia cujos livros devorei e que tanto me ensinaram...

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  13. Se se considerar um sonho como a sublimação de algo que ainda não foi conseguido, como algo que rendo ocorrido necessita de ser trabalhado para que a solução encontrada seja melhorada ou reformulada, então o sonho é um excelente recurso que está disponível.

    Sonhar com essa capacidade significa que a doença ainda não subjugou o paciente e este mantem bem viva essa capacidade de desejar.

    A Yourcenar é uma garantia de leitura superlativa.

    Bjs, Sara

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  14. Que bom que esta memória de Yourcenar foi do vosso agrado. E se o excerto foi, de alguma forma, um incentivo à revisita da obra, então este post já ultrapassou largamente as minhas melhores expectativas.
    Obrigada pelos vossos sempre estimulantes comentários.
    Uma óptima semana para todos! :)

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  15. Um livro é uma fonte de saberes, por mais mau que seja.
    Sonhar, se aos sonhos nos referimos, eu sonhei que voava e acabei por estar três anos na FAP. Voei em quase tudo o que havia naquele então, que tinha hélices, quantas experiências, quase todas boas.
    Os outros sonhos são quimeras...
    Uma boa eleição de autora e de texto.
    Abraços de amizade

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